A jangada dos mortos – Alberto Lins Caldas do livro “BABEL”

Depois do naufrágio as correntes me deixaram numa ilha desconhecida. Era pequena e vinte mortos espalhavam-se pela praia. Não havia vegetação. Com certeza absoluta eu morreria naquele deserto cheio d’água salgada e cadáveres frescos. Outro náufrago estava meio morto e depois das pancadas que levou não demoraria a fazer companhia aos outros na pequena praia circular, talvez demorando alguns dias em dolorosos sofrimentos. Nada podia ser feito. Era preciso pensar uma saída, refazer-se do cansaço que entorpecia mãos, pernas e razão. Não findaria num pedaço de pedra no oceano.

Juntei os cadáveres e os despi. Com as roupas amarrei os corpos como se fossem toras. Uma pequena vela com um pedaço de madeira e estava feita a jangada. Os mortos deviam flutuar bem e naquela quantidade com certeza não afundariam tão facilmente. Pus o companheiro de desgraças ao meu lado e empurrei a jangada ao mar aberto quando a água recuava e podia me ajudar. Com o mar transparente podia ver os rostos boiando, os imensos olhos sob as ondas e os braços estirados como se fossem lemes, e outros levantados formando uma murada como se eu estivesse na palma de uma imensa mão crispada. Ao longe a pequena ilha se perdia no horizonte.

No primeiro dia, a fome era tanta que, quando a noite chegou, comecei a devorar o meu companheiro ainda vivo. No meio da noite não restava mais nenhum pedaço. Com os ossos reforcei a jangada e me senti mais seguro.

No segundo dia comecei a devorar a jangada. A fome em vez de aplacar com o primeiro corpo apenas se apurou.não me preocupei, eram vinte corpos da jangada. Antes de qualquer contratempo chegaria a algum lugar.

No terceiro dia um terço da jangada não existiria mais. Comecei a chorar desesperado porque aquela fome era terrível e maior que o medo da morte e maior que o oceano que nos cabia dentro sem aumentar uma gota d’água nas praias do mundo.

No quarto dia com muita força de vontade consegui economizar alguns corpos, mas da jangada restava pouco, quase nada.

No quinto dia adormeci e sonhei com tubarões e os peixes que gostam de carne. Acordei assustado pensando que a jangada houvesse atraído os predadores do mar, mas eles apenas me olhavam ao longe como se eu fosse os devorar.

No sexto dia estava agarrado a dois cadáveres solidamente amarrados e bebia em grandes goles a água da chuva que despencava das planícies do céu. Pensei assim e achei bonito. Imagem tola, mas naquela situação fez a água mais doce.

No sétimo dia avistei terra e, em pouco tempo, reconheci a pequena ilha onde se iniciara o meu pequeno drama. Realmente havia beleza em tudo aquilo. Quando senti sob os pés as pedras, segurando o braço do último afogado, tive vontade de assistir ao longe um grande navio naufragando, os cadáveres chegando à praia e essa fome sendo, enfim, saciada.

Sobre Douglas Diógenes

Eu - calouro de Publicidade - Ex-estudante de História - Apaixonado pelo poder das palavras e pela beleza da tristeza. "Apesar de crápula, mentiroso e libertino. Sou inocente..."(Carlos Moreira) Ver todos os artigos de Douglas Diógenes

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